1 de julho de 2015

Sobre videogames e conflitos de gerações

Este é um texto que eu estava guardando para um futuro distante, quando eu não tivesse nenhum outro assunto pra falar.

Mas aconteceram coisas na minha vida pessoal que me trouxeram à esta situação, onde eu preciso escrever sobre isto, por mais que eu ainda tivesse alguns assuntos relacionados à E3 e também quisesse falar sobre outras coisas que aconteceram durante a semana passada. Vai ter que ficar pra depois.

E, ainda antes de começar o post pra valer, quero deixar aqui que este post vai ser ainda mais pessoal que os outros, tanto por ser algo que sempre afetou minha vida como por eu ser um ególatra maníaco que só sabe falar de si mesmo.

Ok, vamos ao que interessa.

Hora da historinha


Vamos direto ao ponto: para uma parte da minha família, videogames são piores que drogas. Literalmente, porque eu cheguei a perguntar a alguns familiares se era melhor eu estar bebendo num bar qualquer até tarde da noite do que jogando games em casa quando eu tinha uns dezenove anos e eles responderam que sim. Que era melhor eu estar num bar. Bebendo. Até tarde da noite.

Não quero entrar agora numa discussão sobre a diferença entre álcool e drogas ilegais ou sobre o direito de adultos responsáveis de consumirem os químicos recreativos que bem entenderem ou mesmo até onde se estende a responsabilidade de um governo em supervisionar o consumo de qualquer coisa por parte da população tendo em vista sua saúde. Também não pretendo discursar neste post sobre o potencial de videogames alterarem o humor ou a vida social das pessoas ou mesmo os problemas psicológicos envolvendo vício e jogos em geral, não apenas eletrônicos. A questão que eu quero levantar agora com essa comparação que minha família faz de drogas com videogames é que ela possui uma visão muito limitada e nociva em relação a games, transformando-os num bode expiatório para explicar tudo que não entendem ou não tentam entender sobre “a juventude”. Por mais que eu tenha deixado de ser “a juventude” já tem uns cinco anos, pelo menos. Tenho mais de trinta. Sim, sou um velho. Ou pelo menos me sinto um.

De qualquer maneira, até hoje ouço discursos de como games destruíram a minha geração e de como somos uns vagabundos que não sabem assumir responsabilidades e/ou crianções que nunca cresceram e ficam mamando nas tetas dos pais eternamente só por causa de videogames, independentemente do fato de eu morar com a minha namorada no nosso apartamento e pagar as contas em dia. Tá, teve uma vez que eu atrasei a conta de luz, mas foi porque eu me confundi com o débito automático do banco, e não porque eu fiquei jogando videogames. Fica a dica, aliás: quando registrar uma conta para o débito automático, confira no mês seguinte para ter certeza que está tudo ok.

Voltando para a minha família e a minha geração: foda-se o contexto histórico e econômico, foda-se tudo o que construímos, foda-se tudo o que estamos fazendo e foda-se o fato que foram eles quem nos criaram: para parte da minha família, a minha geração não possui o menor valor porque videogames.

E isso me irrita profundamente. Inclusive, foi ter ouvido pela enésima vez esse discursinho e ter entrado pela enésima vez numa discussão sobre videogames com minha família o que me levou a escrever sobre isto.

Porque eu adoro videogames.

Não sei se deu pra perceber.

Videogames são minha válvula de escape, uma maneira de eu me distrair do stress do dia-a-dia e minha principal forma de diversão e entretenimento. São um grande gerador de amizades e um tipo de “grude” social, pois fiz e mantive muitos amigos jogando games juntos. São uma forma de arte que conseguiu gerar experiências únicas e que foram importantes para minha vida. E, por mais que eu tenha a tendência a priorizar jogabilidade à história de um jogo, acho que seu potencial narrativo é imenso e que ainda estamos começando a aprender a utilizá-lo de maneira realmente impactante.

E eu estava falando só de Journey no parágrafo anterior.

Eu adoro videogames.

E eu convivi minha vida inteira com pessoas que odeiam videogames.

E isso sempre foi uma bosta.

(Antes de eu continuar: Eu sei que existem pessoas com problemas maiores que simplesmente uma família que não gosta de games. Eu sei muito bem que, no esquema geral das coisas, isso é um probleminhazinho, um “white-whine” de alguém que não teve que conviver com problemas de aceitação familiar de verdade, aqueles onde os pais chegam ao ponto de expulsar os filhos de casa só por eles serem quem são. Imagina, esse sequer foi o maior conflito familiar que eu já tive. Eu sei disso tudo. Mas eu estou contando esta história toda porque eu preciso. Pode até ser que, depois de tudo o que eu falar, alguém consiga refletir um pouco mais sobre os próprios conflitos familiares e conflitos de geração. E o blog é meu e eu faço o que eu quero.)

Por muito tempo, nunca entendi direito de onde vinha todo esse desprezo. Não era como se eu fosse mal na escola por causa de videogames, eu era um bom aluno (por “bom aluno” quero dizer “passava de ano sem pegar recuperação, média 7,5”). Também não era como se eu estivesse machucando alguém ao jogar videogames, ou mesmo como se eu estivesse prejudicando minha saúde. No máximo, existia o argumento de que eu não saía muito de casa para fazer exercício ou coisa parecida, mas mesmo assim o nível de desprezo que eles chegavam era excessivo, e por muito tempo pratiquei natação e artes marciais, o que, pelo menos para mim, invalidava um pouco esse argumento.

Para piorar a situação, esse desdém por games afetava também os meus primos, o que sempre foi ainda mais estarrecedor para mim. Eles são melhores alunos/profissionais/seres humanos que eu jamais fui e jamais serei, mas o simples fato deles jogarem videogames e ainda não terem ganho o prêmio Nobel da engenharia (o único Nobel que existe para uma família japonesa) os torna incapazes e preguiçosos aos olhos dessa parte tosca da minha família.

A conclusão mais óbvia que eu cheguei sobre esse posicionamento deles era que tudo não passava de um conflito de gerações. Eu e meus primos nascemos e crescemos numa realidade, esses meus familiares em outra e nunca iríamos chegar num entendimento.

Conflito de gerações, faz parte


Outro adendo antes de continuar: no fundo, acho essa atitude de classificar seres humanos por “gerações” um tanto reducionista, preguiçosa e levemente preconceituosa. Mas é possível sim achar elementos em comum entre diversos indivíduos nascidos num mesmo lugar numa mesma época. Por isso, vou continuar usando o conceito de gerações mais para facilitar o desenrolar do texto do que necessariamente por concordar com esse rótulo. Sério, se não for para analisar comportamentos mais amplos na sociedade durante diferentes períodos históricos (por exemplo: comparar como diferentes gerações lidaram com diferentes crises econômicas, a de 1929 e a de 2008) ou para fins humorísticos, não fique ensacando as pessoas em gerações. É um comportamento muito baby-boomer.

Muito bem: o que gera conflitos de geração?

Ao invés de fazer o sensato, que seria buscar no Google e na Wikipedia por estudos e análises feitas sobre o tema, resolvi ficar pensando sozinho no assunto e usar as minhas experiências pessoais para responder a essa pergunta. Encontrei três motivos principais.

O primeiro é aquele que está embutido no próprio conceito de geração que descrevi acima: pessoas que nasceram em épocas diferentes viveram experiências diferentes e, com isso, criaram visões de mundo diferentes. Simples. Nem tenho o que acrescentar.

O segundo motivo é fisiológico. Crianças estão em um estágio da vida, adolescentes em outro, adultos em outro e idosos em outro. Insiram aqui hormônios, força física, conexões neurais e o que mais quiserem para diferenciar esses grupos, mas a questão é que, pelo menos na minha opinião, o aspecto biológico acaba contribuindo também para o problema.

O terceiro envolve experiência pessoal. Sabem aquela coisa de adultos falarem “você vai entender um dia”? É disso que eu estou falando. Quem tem cinqüenta anos já teve vinte, mas quem tem vinte nunca teve cinqüenta, e por isso os mais velhos tendem a desmerecer as opiniões dos mais jovens justamente por lembrar que mudaram de opinião durante a vida. Se posso dar um exemplo pessoal, quando eu tinha uns treze, catorze anos, acreditava que bandas com mulheres eram piores que bandas só com homens. Foi uma coisa que nasceu de gostar do Oasis e querer desmerecer as Spice Girls. Hoje em dia, eu sei que essa é uma idéia absolutamente imbecil e sexista, que o gênero dos músicos não afeta em nada a qualidade da música, e que Wannabe é uma música ótima para caraoquê. Não apenas isso, mas tenho vontade de arranjar uma máquina do tempo só pra dar um tabefe em mim mesmo no passado. Acho que o fato disso não ter acontecido demonstra que não consegui. Droga.

Só pra deixar todo mundo com a música na cabeça.

Tendo apresentado estes três motivos, a verdade é que eles possuem a mesma origem. Ou melhor, eles são catalisadores daquilo que gera o problema em primeiro lugar.

Para melhor explicar a raiz do problema, quero falar sobre um senhor de quase sessenta anos (na época, agora ele passou dos sessenta) que certa vez discorreu sobre videogames e conflitos de gerações e chegou à uma conclusão que me ajudou entender não apenas porque esses meus familiares desprezam games, mas conflitos de gerações em geral.

Videogames e Rock’n Roll


Vocês conhecem o mágico Penn Jillete? Da dupla Penn & Teller?

Ele é um mágico/malabarista que tem um show em Las Vegas, teve alguns programas de TV e que também é muito conhecido nos EUA como um grande porta-voz do ateísmo, do libertarismo e do pensamento crítico. Gosto bastante dele, apesar de não concordar com tudo o que ele fala. Digamos assim: ele expõe suas idéias de uma maneira que eu consigo entender porque ele pensa do jeito que pensa, mas eu ainda assim discordo de alguns pontos. E ele é engraçado. Se alguém quiser conhecer mais sobre ele, recomendo o programa de TV de maior sucesso dele e do Teller, o Bullshit!, e o podcast dele, Penn’s Sunday School. Hoje em dia eu não consigo mais acompanhar o podcast dele por falta de tempo, mas teve uma época que eu ouvia todo episódio.

De qualquer maneira, num dos episódios do podcast ele começou a falar de videogames. Se bem me lembro, acho que o assunto surgiu porque a Hillary Clinton fez um comentário sobre “essa geração que fica desperdiçando a vida com videogames”. Mas, ao invés de concordar com a Hillary e tirar sarro dessa juventude serelepe, ele começou a falar do Bob Dylan. Até aí, normal, depois de ouvir o podcast dele por um tempo você se acostuma com qualquer coisa lembrar ele do Bob Dylan, assim como o Kevin Smith conecta qualquer coisa com Batman e/ou Star Wars no podcast dele. De qualquer maneira, Penn estava falando de um dia, quando ele era adolescente, em que ele e os pais estavam assistindo um programa de TV, não lembro qual, acho que um desses talk-shows, e o apresentador começou a ler a letra de uma música do Bob Dylan e a tirar sarro dessa música idiota que os jovens ouvem, o rock’n roll.

E os pais dele caíram na gargalhada.

E ele ficou chateado.

Porque tanto o apresentador quanto os pais dele não tinham entendido a letra da música. O Bob Dylan não cantava sobre aquilo que o apresentador estava tirando sarro, ele cantava sobre as angústias e as idéias dele e da geração do Penn. Ele sentiu que eles não estavam tirando sarro apenas do Bob Dylan, mas de toda a sua geração.

Depois desse episódio, ele tentou explicar para a mãe as músicas do Bob Dylan, e ela ouviu pacientemente tanto as explicações quanto as músicas. Mas ela continuou sem entender exatamente o que Penn tanto gostava nelas, levando-o a desistir de explicar, e os dois simplesmente continuaram suas vidas, ela sem entender Bob Dylan e ele sabendo que ela não entendia Bob Dylan.

Ou seja, conflito de gerações em ação.

Depois de contar essa experiência, Penn começou a falar dos filhos dele jogando Minecraft. De como as crianças tentaram explicar pra ele como funcionava, delas ensinando ele a jogar, delas falando empolgadas desses YouTubers fazendo criações fantásticas nesse jogo e como ele não entendia lhufas, nem do jogo, nem do valor das habilidades desses jogadores, nem da atração que o jogo tinha sobre seus filhos.

Ou seja, conflito de gerações em ação.

Quando ele percebeu isso, que os filhos tentando explicar Minecraft para ele era como ele tentando explicar Bob Dylan para a mãe, Penn finalmente entendeu o que a mãe tinha sentido. Ele percebeu que videogames simplesmente jamais iriam se comunicar com ele e a geração dele porque esta era a arte criada por outra geração para outra geração. Ele até podia aprender a jogar, ele podia até mesmo gostar de alguns jogos, mas videogames nunca iam ter o mesmo nível de conexão com ele que com os filhos.

A conclusão que ele chegou: videogames são o rock’n roll dessa geração.

E aqui vem a grande diferença entre o Penn e a mãe dele em relação aos meus familiares: quando ele percebeu que videogame não era pra ele e a mãe dele percebeu que rock’n roll não era pra ela, eles simplesmente aceitaram isso e começaram a respeitar o gosto dos filhos. Eles deixaram os filhos, essa outra geração, simplesmente gostar daquilo que gostavam (e que foi feito para eles gostarem) e pronto. Nada mais de ficar tirando sarro, nada mais de ficar culpando essas artes por comportamentos juvenis e nada de ficar criticando os jovens por gostarem de coisas de jovens.

E foi assim que eles superaram os três motivos que eu listei antes cortando o mal dos conflitos de gerações pela raiz: eles respeitaram a geração mais nova. Eles perceberam que ela tinha gostos próprios, valores próprios e pensamentos próprios. Porque a origem de todo conflito de geração nasce de uma falta de empatia pelo próximo, uma falta de vontade em entender o ponto de vista do outro somada a uma preguiça intelectual onde um grupo de pessoas, uma geração inteira, é desumanizada e reduzida a um rótulo só para poder ser colocada numa posição de inferioridade e assim ressaltar como “a minha geração” é a melhor.

Não existe essa de “a melhor geração”. Parem de ficar dando corda pra essa merda. É uma maneira de preconceito que, sei lá porquê, é aceita pela sociedade, mas que no fundo não é nada mais que isso: preconceito.

É o que eu acho, pelo menos.

Podemos aplicar o teste que uma amiga minha me ensinou para saber se você está sendo preconceituoso ou não: troque o termo do que você está falando por “negros”.

Exemplo: “A sua geração é um bando de folgados que não realiza nada porque fica jogando videogame o tempo inteiro.”

Agora substituam.

Pois é.

No final das contas, essa parte da minha família despreza videogames por causa de um dos piores motivos que existe: preconceito.

Conclusão


Foi vendo que existia esse senhor de quase sessenta anos que valorizava e respeitava a cultura de uma geração mais nova que eu entendi uma coisa sobre minha parentada anti-games: eles não dão a mínima para os meus valores, minhas idéias e os meus gostos. Os meus e os dos meus primos, aliás. Para eles, o fato da gente simplesmente gostar de uma coisa que eles não entendem, videogames, nos torna inúteis aos seus olhos, independentemente do que consigamos realizar com nossas vidas. E tudo isso nasce de um preconceito estúpido.

Eu sei que muitas vezes é difícil entender outra pessoa, seus gostos, seus valores, seus hobbies e temos vontade de aplicar algum rótulo pronto que temos na nossa cabeça para não ter que pensar muito no assunto. Rótulos como “geração X” ou “baby-boomers” ou “millenials”. E, quer saber? Tudo bem usar esses rótulos, faz parte, nossos cérebros não conseguem mesmo compreender profundamente todos os seres humanos com quem convivemos.

Só não reduza a um rótulo vazio uma pessoa próxima, com quem você convive e que você ama.

Como família.

Família. Significa ohana.

Pena que parte da minha não pensa assim e me rotula como “um vagabundo que desperdiça a vida jogando videogames”.

Só espero que não seja um traço genético, que eu realmente não quero ser assim com os meus filhos. Se eu for, mostrem este post para eles.

Links


• Penn Jillette Is Tired Of The Video Game Bulls*** (GameInformer)

• 15 Historical Complaints About Young People Ruining Everything (Mental Floss)

• Every Every Every Generation Has Been the Me Me Me Generation (The Wire)

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